Saturday, August 07, 2004

CMI Brasil - O Kardecismo pode ser uma ferramenta do "status quo"?

Estava eu pesquisando sobre a relação entre Espiritismo e a ética da Internet - software livre e coisas do tipo - quando cruzei com um artigo que coloca uma discussão muito interessante, em:

CMI Brasil - Kardecismo x Macumba

O autor argumenta que o Kardecismo atuou decisivamente na formação da Umbanda, com o objetivo único de criar uma situação de manutenção do poder; ele atribui ao Kardecismo o papel de religião que pode manter o status social, pois sua doutrina aboliu o conceito de rebelião, valorizando a resignação ao sofrimento; e finalmente, em uma resposta a um comentário, ainda argumenta que a caridade pregada pela doutrina é "um ridículo teatro" criado para manter os ricos e pobres cada um no seu lugar. Segue-se uma discussão com pontos de vista variáveis, que ilustra bem alguns pontos no entendimento e prática da Doutrina Espírita no Brasil que eu nunca cheguei a entender completamente .

O autor do texto original assume que não dispõe de referências para muitas de suas afirmações, que refletem apenas a sua intuição. A falta de seriedade é lamentável, pois algumas das afirmações publicadas beiram a difamação. Mas o pior é perceber que nas respostas, poucos sequer se aproximaram de uma compreensão verdadeiramente espírita do problema.

Não há como negar a força de alguns dos argumentos colocados pelo autor quanto à prática do Espiritismo no Brasil. Efetivamente, a divulgação da doutrina se deu principalmente através de pessoas que tinham uma visão muito clara e particular do que significava ser evoluído. Há que se considerar o peso da época; os próprios textos de Kardec deixam transparecer em algumas passagens uma certa condescendência, que considero constrangedora, com nossos irmãos "selvagens" e "menos evoluídos".

Poucos são capazes de enxergar o espírito por trás da letra. Muitas vezes, a própria letra da Codificação da Doutrina Espírita carrega o peso do preconceito, e isso é inegável para quem a leia com objetividade. Pois então, o que nos resta é avaliar o espírito da obra como um todo; ele nos convoca a abandonar o preconceito, a entender cada irmão com os olhos da alma, vendo a pureza do coração e a grandeza espiritual que se escondem por trás de figuras humildes e às vezes, grosseiras.

As diferenças doutrinárias e políticas entre Kardecismo, Umbanda, Quimbanda, quanto à forma, não interessam; o que conta é a sua pureza de intenções e práticas. O que me preocupa é a intenção em rotular, procurando no olho dos outros a trave que temos em nosso próprio. Por isso, não duvido que várias das passagens discutidas tenham realmente ocorrido, envolvendo pessoas e situações específicas. Mas isso não afeta o brilho da Doutrina Espírita; apenas mostra que, como toda obra humana, sua leitura e interpretação na Terra são falíveis. Não duvido que índios ou negros escravos, com alto grau de adiantamento moral, tenham procurado oportunidades de trabalho espiritual em casas espíritas, para ser 'doutrinados' e ignorados como seres inferiores. Também não duvido que isto ainda ocorra. O grau do nosso preconceito só se torna visível quando somos chamados a conviver de perto com nossos irmãos que acreditamos serem "inferiores". No entanto, resta a certeza que o tempo é longo, e a estrada é uma só; nela todos nos encontraremos, em um futuro mais ou menos distante que somente a nós cabe abreviar.

Quanto ao papel social do Kardecismo, também é interessante pensar se sua origem, conforme proposta pelo autor do texto, não ajuda a explicar algumas controvérsias que vivemos hoje, bem como a postura por vezes excessivamente rígida e legalista, que chega a engessar a atuação de algumas entidades. Às vezes tenho a intenção que o "fundamentalismo espírita" traz danos maiores do que se imagina, pois ele ignora ou despreza a participação de entidades que estão apenas fazendo o que se espera - atuando junto às pessoas, usando uma linguagem apropriada ao seu próprio grau de preparo. O caminho desde Moisés a Jesus, e depois de Jesus até Kardec foi longo. Os próprios textos da Doutrina Espírita alertam para a necessidade de se comunicar com o homem de acordo com o seu grau de preparo. A postura de condescendência com irmãos "menos evoluídos" é uma manifestação de desrespeito e falta de caridade. Se o nosso próprio mestre Jesus viveu entre nós como um ser humano qualquer, o que dizer daqueles que se pretendem mais evoluídos ao olharem para os outros, "menos evoluídos", com esta condescendência, que no fundo é apenas uma máscara para adoçar seu preconceito e desrespeito? A verdadeira caridade está na compreensão plena, no amor que permite ver além dos atos, entendendo as circunstâncias que cercam cada um de nós. E esse talvez seja o grande aprendizado desta discussão.